Em defesa de Lana


O que cria a identificação de Lana Del Rey conosco?


por Felipe Bier 





 “Money is the reason we exist, everybody knows it, it’s a fact, kiss kiss”. A princípio, uma afirmação assim peremptória sobre a natureza humana deveria causar asco, sobretudo àqueles que, como nós, recebem este conteúdo cultural no contexto da ‘cruzada civilizatória’ empreendida por uma nação que aspira a ascensão a outro patamar de desenvolvimento econômico. Isto é, a frase extraída da música National Anthem, de Lana Del Rey, deveria causar reações polarizadas e excludentes: ou reclamaria uma adesão irrefletida por quem, sem muitos problemas de consciência, consome produtos ideológicos vindos sobretudo dos EUA, ou motivaria rejeição imediata. Confesso que tenderia a me encaixar neste segundo grupo, ainda mais quando o assunto são cantoras pop que a todo momento nos são enfiadas goela abaixo. Mas há algo em Lana Del Rey que desestabiliza esta polarização e – pasmem – cria uma identificação das intenções da cantora conosco, habitantes do famigerado terceiro mundo.

Há uma polarização na história da arte entre essência e aparência que data de alguns milênios, mas que, no século passado, parece ter perdido um pouco o lugar. As formas artísticas respondem a necessidades da sociedade em que circula: sendo assim, também a arte tomou parte no processo que galvanizou a ampla hegemonia do capital no século XX. Trocando em miúdos, as formas artísticas tiveram que se haver com seu quê de mercadoria: o século que deixamos para trás foi o que conheceu um novo patamar de cultura popular, a saber, aquela que é produzida em massa e cujas convenções são facilmente manipuláveis. Uma arte que não é mais expressão de angústia diante do desconhecido, que não traz em si nenhum rastro de opacidade: esta é uma arte que é facilmente deglutida, uma arte que reverbera a despeito de diferenças de classe, de nações etc. Vivemos a época de uma expressão artística que é absolutamente luminosa, segura de si, e que expressaria esta segurança no aparato técnico que lhe dá suporte. Podemos ver isto claramente no âmbito da música, sobretudo esta feita em escala industrial, em que tudo é contornável, ao ponto de nos perguntarmos há realmente humanos por trás de execuções em estúdio tão perfeitas. Trocando em miúdos, vivemos a era do autotune porque vivemos a era do fetiche.

Em um primeiro olhar, a música de Lana Del Rey se encaixaria sem nenhuma reserva a este panorama. A audição de seu álbum Born to Die propicia um belo exemplo de perfeição técnica: tudo está no lugar, tudo foi devidamente pensado e executado de modo a produzir algo absolutamente apreensível pelo ouvido que cresceu em meio à insistente escola da indústria fonográfica. Até aí, nada a separaria de outras tantas cantoras pop, como as mais bem-sucedidas Lady Gaga e Beyoncé. Há, no entanto, uma impressão que carrego desde a primeira vez que a ouvi: a de que existiria um núcleo ‘crítico’ em sua música, algo que a afastaria da condição de mero objeto de consumo. É óbvio que Lana Del Rey é uma autêntica cria da indústria cultural, acerca disto não há dúvidas. O que se coloca em questão é como ela faz uso desta posição ao centro do coração pulsante da mercadoria.





Voltemos à frase que abre este texto. Dizer que o dinheiro é a razão pela qual existimos é, em um primeiro plano, algo que, de tão desconcertante, a afasta de lições de boa conduta e moral – um pouco próximo da autoajuda – que encontramos em Lady Gaga (Born this way, por exemplo) ou Beyoncé (cuja produção é recheada do novo “poder” feminino). A frase de Lana parece almejar o desconforto: ao contrário de suas colegas, sua mensagem não é “você também é especial e poderoso”, mas “você é insignificante, mera mercadoria”. Este segundo sentido é potencializado pela drástica tensão contida em sua música: em todo o álbum, não somente nesta canção, é possível encontrar frases recheadas de desarranjo – seja quanto à consciência de que ela mesma é uma mercadoria da indústria, seja no que toca a construção da feminilidade em consonância com a construção da posição de objeto de fetiche – entremeadas a afirmações plenas de consequências: “winning and dining, drinking and driving, excessive buying, overdose and dying, on our drugs and our love and our dreams and our rage, blurring the lines between the real and the fake”. Tenho dificuldades em achar um exemplo melhor de uma produção tão potente quanto esta, tão consciente de si, feita nos últimos anos de indústria musical.

Se tudo isto é uma estratégia de marketing, é difícil dizer. Arriscaria inclusive afirmar que a questão pouco importa. Como afirma a própria Lana, sua música traz consigo a capacidade de borrar os limites entre o falso e o verdadeiro, precisamente por se colocar no exato ponto em que a arte se transforma em mercadoria (aqui até mesmo sua controversa participação no Saturday Night Live se reveste de interessante caráter inquietante). Neste ponto, questões como esta acabam perdendo a função. O que resta de crítico em sua música diz respeito a este olhar desconcertante que nos é lançado da linha de montagem da indústria cultural: algo como um olhar petrificante e resignado, de uma moça que sabe que está prestes a se transformar em produto de fetiche, seja sexual, seja musical. Este olhar que nos tira de nossa posição confortável de meros consumidores, seja de mulheres, seja de arte. Trata-se de um olhar que diz: “você pode me consumir, mas tenha consciência de que consome um objeto falso, e que o único instante de verdade nisto será precisamente esta rápida fagulha de consciência”. 

Curiosamente, como aventado no começo deste texto, há uma proximidade entre esta posição – criada à revelia por Lana no cerne da indústria – e a nossa. Nós, enquanto coadjuvantes do mundo ‘civilizado’, enquanto meros aspirantes, falamos deste mesmo lugar: daquilo que está na esteira da fábrica, prestes a ser processado. Há com isto um distanciamento – mínimo, é verdade – essencial quanto à ideologia: algo que a música de Lana cria à força, como se abrisse espaço em meio à areia movediça que é o consumismo norte-americano. Sua lição para nós, produtores de arte em países marginais, é enigmática; mas por isto mesmo muito poderosa.


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